Há tempos, eu (Breno) levei para um de nossos encontros uma canção do Mestre Monclar Valverde cuja letra era o início de A Metamorfose, de Franz Kafka, em francês. É uma música belíssima: para além da cadência do texto -- não lembro quem foi o tradutor, perdoem, só me recordo do fato de que era poeta -- para além da cadência do texto, a melodia cria uma atmosfera que transita entre luz e sombra, como a própria obra do Kafka.
Kafka é um de meus autores favoritos, uma referência tanto literária quanto filosófica. Quando, então, descobri que Vegah falava alemão, não pude deixar de pedir-lhe que me lesse o princípio de A Metamorfose no original. (Kafka, apesar de ser checo, escrevia em alemão. Se você tem uma ideia incrível...)
Queria escutar a sonoridade, a força das palavras que ele escolheu. Como João também estava seduzido pela desafio de tentar criar sua própria leitura da atmosfera da obra (e acho que ele conseguiu bastante bem), resolvemos gravá-la, e aí está. Um singelo presente àqueles que, como nós, admiram este autor.
Vou aproveitar a deixa para falar ainda da nossa produção em outras línguas. No último encontro, Saulo e eu conversávamos sobre isto. Para não mencionar o fato de um dos nossos barulhentos (Lois) ser galego, o que pontuei naquele momento foi que, de certa forma, pode ser mais fácil escrever em outra língua, porque, com nosso vocabulário restrito, acabamos por aceitar aquela única palavra que sabemos para representar algo. A nossa língua-mãe, ao invés, se nos apresenta um amplo leque de opções, nos deixa escolhas -- e todos que escrevem sabem a tarefa árdua que pode ser escolher entre um mas e um porém.
Para estender meu argumento, cito Borges, um texto fruto de uma conferência, intitulado Pensamento e Poesia, que me foi apresentado pelo próprio Monclar. A tese sustentada por Borges aí é a de que a ideia válida para a música, sobre a impossibilidade de cindir a forma da substância, também o é para a poesia.
Em seus estudos histórico-linguísticos, Borges nos mostra que as palavras não começaram abstratas (no sentido de convencionadas), mas concretas, com um forte significado, envoltas em mágica -- “acredito que, nesse caso, 'concretas' signifique quase o mesmo que 'poéticas'”, escreve ele. Para deixar cá um exemplo, vale transcrever sua análise da palavra “noite”:
“...podemos presumir que, de início, ela representava a própria noite – sua escuridão, suas ameaças, as estrelas cintilantes. Então, depois de tanto tempo, passamos ao sentido abstrato da palavra 'noite' – o período entre o crepúsculo do corvo [...] e o crepúsculo da pomba, o princípio do dia.”
Com todas as nossas limitações, nós gostamos de pensar que buscamos essa concretude mágica das palavras. Em todas as línguas com as quais nos relacionamos.
That's all, folks.
[ficha técnica]
texto - franz kafka [a metamorfose, no original]
leitura - marccela vegah
música - joão vinícius
terça-feira, 4 de agosto de 2009
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Um comentário:
Belíssima adaptação com um guia prático de degustação! :)
Qualquer coisa posso contribuir, como um dos "garotos que inventam um novo inglês". êa!
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